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sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Grande Massacre dos Gatos, de Robert Darnton


O historiador cultural estadunidense Robert Darnton publicou em 1984 seu livro intitulado "O Grande Massacre dos Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa" em que se dedicou a fazer um elaborado estudo das tradições e costumes do país. Esta análise irá se deter, entretanto, no segundo capítulo do livro, que recebe o título de "Os trabalhadores se revoltam: o grande massacre dos gatos na rua Saint-Séverin", no qual o autor discorre sobre a narrativa do operário Nicolas Contat acerca do episódio.

Primeiramente é preciso se entender qual era o contexto social no qual a chacina dos gatos ocorreu. A França pré-industrial e pré-revolucionária, ainda sob o governo do Antigo Regime, era sustentada pelo estonteante trabalho de sua classe operária que, além das longas horas de labor, quase não tinham direito ao sono - eram pouquíssimas horas, pois tinham que acordar mais cedo que todos -, a comida que ingeriam eram restos dos alimentos dos burgueses (em certas situações, os cozinheiros os vendiam uma comida de gato intragável) e ainda tinham que suportar a arrogância e os desmandos dos seus patrões. É importante ressaltar a observação que Darnton faz citando o relato de Contat: antes desse início de período de industrialização, a relação entre o patrão e os empregados era harmoniosa, ou como diz Darnton, uma "família ampliada", sendo que até chegavam a comer a mesma comida e dividir o mesmo quarto; porém, foi a partir da introdução do pensamento capitalista/industrial que, com a mentalidade de busca de lucros e a necessidade do aumento da produtividade, a relação entre ambas as partes foi se tornando menos estreita até chegar ao ponto dos empregados serem tratados como animais - ou até pior, já que até alguns animais tinham regalias para com os burgueses.

Dentro dessa esfera social aconteceu o episódio da matança dos gatos; os bichos costumavam ficar vagando pelos telhados e em torno dos quartos dos operários e aprendizes e dos mestres burgueses (com a diferença que estes tinham muitos mais horas de sono) para uivar e miar escandalosamente, impossibilitando qualquer tentativa de descanso, principalmente por parte dos que tinham que acordar logo cedo. Então, um casal burguês resolve ordenar aos aprendizes que se livrassem deles, menos a gata "la grise" da patroa. A ordem foi cumprida, a matança foi posta em prática, mas com o porém da desobediência com relação à gata da patroa: inclusive ela foi sacrificada. Entre gritos de satisfação e altas risadas, os operários e aprendizes efetuavam o ritual com os infortunados animais mortos e queimados.

Darnton adverte incitando o leitor a refletir sobre o porquê dessa grande chacina de gatos - o que hoje seria encarado com grande horror - ter resultando em tanta alegria e festejo para aqueles que os sacrificavam; estudos e pesquisas podem comprovar fatos sobre a cultura e folclore dos povos daquele região e daquela época; grandes festas folclóricas eram realizadas com bases nos mais diversos rituais e uma delas era o carnaval: as pessoas saíam às ruas para cantar e fazer troça de qualquer situação que subvertia os bons costumes da época; e em meio à cantoria e zombaria, alguns gatos eram açoitados para soltar uivos que serviam para se juntar às zombarias. Além disso, esses bichos eram tidos como portadores de uma oculta maldade e maus augúrios, sendo seus feitiços só quebrados se quem cruzasse com eles os aleijasse, os queimasse ou arrancasse seus pelos; havia também uma ligação deles com a sexualidade feminina: o zelo que um homem tinha com um gato, teria também com sua mulher, ou teria mais sorte para encontrar uma. Vê-se então que os gatos faziam parte de todo um conjunto de costumes, tradições e mitos, tendo uma aura de mistério em torno deles. Sua simbologia, portanto, foi utilizada no fatídico caso do massacre narrado por Contat e sublinhado por Darnton; o sacrifício dos animais era a batalha de toda uma classe operária farta de suas condições de vida e trabalho.

Sob o prisma de uma cultura totalmente diferente da que estamos inseridos, os trabalhadores oprimidos pelo sistema vigente encontraram uma forma dentro de seus costumes para fazer frente à injustiça, buscar seus direitos e suprimir as intensas cargas de trabalho a que eram submetidos. O massacre dos gatos era, então, uma metáfora para o próprio massacre da sofrida classe operária.

Douglas P. Coelho

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