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sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Grande Massacre dos Gatos, de Robert Darnton


O historiador cultural estadunidense Robert Darnton publicou em 1984 seu livro intitulado "O Grande Massacre dos Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa" em que se dedicou a fazer um elaborado estudo das tradições e costumes do país. Esta análise irá se deter, entretanto, no segundo capítulo do livro, que recebe o título de "Os trabalhadores se revoltam: o grande massacre dos gatos na rua Saint-Séverin", no qual o autor discorre sobre a narrativa do operário Nicolas Contat acerca do episódio.

Primeiramente é preciso se entender qual era o contexto social no qual a chacina dos gatos ocorreu. A França pré-industrial e pré-revolucionária, ainda sob o governo do Antigo Regime, era sustentada pelo estonteante trabalho de sua classe operária que, além das longas horas de labor, quase não tinham direito ao sono - eram pouquíssimas horas, pois tinham que acordar mais cedo que todos -, a comida que ingeriam eram restos dos alimentos dos burgueses (em certas situações, os cozinheiros os vendiam uma comida de gato intragável) e ainda tinham que suportar a arrogância e os desmandos dos seus patrões. É importante ressaltar a observação que Darnton faz citando o relato de Contat: antes desse início de período de industrialização, a relação entre o patrão e os empregados era harmoniosa, ou como diz Darnton, uma "família ampliada", sendo que até chegavam a comer a mesma comida e dividir o mesmo quarto; porém, foi a partir da introdução do pensamento capitalista/industrial que, com a mentalidade de busca de lucros e a necessidade do aumento da produtividade, a relação entre ambas as partes foi se tornando menos estreita até chegar ao ponto dos empregados serem tratados como animais - ou até pior, já que até alguns animais tinham regalias para com os burgueses.

Dentro dessa esfera social aconteceu o episódio da matança dos gatos; os bichos costumavam ficar vagando pelos telhados e em torno dos quartos dos operários e aprendizes e dos mestres burgueses (com a diferença que estes tinham muitos mais horas de sono) para uivar e miar escandalosamente, impossibilitando qualquer tentativa de descanso, principalmente por parte dos que tinham que acordar logo cedo. Então, um casal burguês resolve ordenar aos aprendizes que se livrassem deles, menos a gata "la grise" da patroa. A ordem foi cumprida, a matança foi posta em prática, mas com o porém da desobediência com relação à gata da patroa: inclusive ela foi sacrificada. Entre gritos de satisfação e altas risadas, os operários e aprendizes efetuavam o ritual com os infortunados animais mortos e queimados.

Darnton adverte incitando o leitor a refletir sobre o porquê dessa grande chacina de gatos - o que hoje seria encarado com grande horror - ter resultando em tanta alegria e festejo para aqueles que os sacrificavam; estudos e pesquisas podem comprovar fatos sobre a cultura e folclore dos povos daquele região e daquela época; grandes festas folclóricas eram realizadas com bases nos mais diversos rituais e uma delas era o carnaval: as pessoas saíam às ruas para cantar e fazer troça de qualquer situação que subvertia os bons costumes da época; e em meio à cantoria e zombaria, alguns gatos eram açoitados para soltar uivos que serviam para se juntar às zombarias. Além disso, esses bichos eram tidos como portadores de uma oculta maldade e maus augúrios, sendo seus feitiços só quebrados se quem cruzasse com eles os aleijasse, os queimasse ou arrancasse seus pelos; havia também uma ligação deles com a sexualidade feminina: o zelo que um homem tinha com um gato, teria também com sua mulher, ou teria mais sorte para encontrar uma. Vê-se então que os gatos faziam parte de todo um conjunto de costumes, tradições e mitos, tendo uma aura de mistério em torno deles. Sua simbologia, portanto, foi utilizada no fatídico caso do massacre narrado por Contat e sublinhado por Darnton; o sacrifício dos animais era a batalha de toda uma classe operária farta de suas condições de vida e trabalho.

Sob o prisma de uma cultura totalmente diferente da que estamos inseridos, os trabalhadores oprimidos pelo sistema vigente encontraram uma forma dentro de seus costumes para fazer frente à injustiça, buscar seus direitos e suprimir as intensas cargas de trabalho a que eram submetidos. O massacre dos gatos era, então, uma metáfora para o próprio massacre da sofrida classe operária.

Douglas P. Coelho

terça-feira, 26 de junho de 2012

Uma visão sobre os Direitos Humanos

Direitos Humanos é um documentário lançado no Brasil que data do ano de 2006, dirigido por Marcelo Caetano, Kiko Goifman e Julio Taubkin. Com dezenove minutos de duração, traz explicações e opiniões de especialistas e estudiosos sobre o assunto, além de consternados relatos de vítimas da afronta dos direitos humanos e algumas imagens - como a dos campos de concentração - capazes de sensibilizar o telespectador.

O documentário revela as origens relacionadas à dignidade do indivíduo dentro da moral e dos direitos, a importância do seu debate e cumprimento, relatos de desrespeito a esses valores; além disso, há um ambíguo caso relacionado que ocorreu no Brasil de um jovem que tentou assaltar um ônibus, manteve reféns diante de policiais e membros da mídia até que foi capturado pela mesma polícia e, longe das câmeras de tevê, reaparece morto em seguida. Esse tipo de caso nos faz pensar em duas questões levantadas por Mauro Maldonato, cujo texto em que as aborda já foi discutido neste blog: o limite a que devemos tolerar atitudes que agridem a dignidade alheia e a forma como o Estado (e no caso, a polícia) imprime e força a segurança desta mesma dignidade (agindo de forma a eliminar um problema que os mesmos não conseguem impedir de proliferar); o crime e a delinquência certamente não devem ser tolerados, mas devem ser coibidos pela execução da própria vida humana?

O documentário fez parte da 2ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul em 2007; assista-o a seguir, dividido em duas partes:





Douglas P. Coelho

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Poetas da Resistência: Louis Aragon

Durante o período da Segunda Guerra Mundial, emergiu na França um grupo de escritores e intelectuais que se opuseram ferrenhamente ao despotismo imperialista da Alemanha Nazista integrando partidos comunistas, jornais clandestinos e a Resistência Francesa. Entre eles estava Louis Aragon, que encabeçava o movimento surrealista da literatura ao lado de Paul Éluard e André Breton.

Aragon escreveu um belo poema bastante representativo da tensa época em que o nazismo espalhava a apreensão por toda a Europa. O poema se intitula "Ballade de celui qui chanta dans les supplices" ("Balada daquele que canta sob tortura", em tradução livre), conta a história de um homem que estava encarcerado e, por não concordar em colaborar com confissões aos seus carrascos, é executado.

Ao analisar o poema por partes, percebemos alguns detalhes interessantes: no terceiro paragrafo, dois homens dizem ao prisioneiro: "dis le mot qui te délivre, et tu peux vivre à genoux" ("diga a palavra que te liberta e você poderá viver de joelhos"), dando uma ideia da submissão que o nazismo tentava impor ao mundo; a condição para que o mártir fosse liberado era que ele fizesse alguma confissão que, na verdade, era uma mentira que os carrascos queriam que ele assumisse: "Rien qu'un mot la porte cède (...) Rien qu'un mot rien qu'un mensonge, pour transformer ton destin" ("Nada mais que uma palavra para a porta se abrir (...) Nada mais que uma palavra, uma mentira, para transformar seu destino"); no final do poema, fica claro o senso de patriotismo resistente do eu-lírico, ele morre pela França, se recusa a cooperar com seus opressores pelo seu país: "Je meurs et France demeure, mon amour et mon refus" ("Eu morro e a França continua, meu amor e minha recusa"); apesar de ser executado, ele morre com convicção e sem arrependimento, cantando o hino da França - la Marseillaise - diante dos seus carrascos alemães, sendo então calado pelas balas, mas deixando um outro canto de esperança e resistência para toda a humanidade: "Il chantait lui sous les balles (...) D'une seconde rafale, il a fallu l'achever, une autre chanson française a ses lèvres est montée, finissant la Marseillaise pour toute l'humanité" ("Ele cantou para eles sob balas (...) Depois de uma segunda rajada, ele é obrigado a se calar, uma outra canção francesa sobe aos seus lábios, terminada a Marseillaise, para toda a humanidade").

Para quem quiser conferir o poema em francês na íntegra, clique AQUI (infelizmente não encontramos tradução desse poema na internet).

Douglas P. Coelho

terça-feira, 19 de junho de 2012

Canção do Outono, de Paul Verlaine, na Segunda Guerra

Paul Verlaine foi um poeta francês que viveu durante o século XIX e é considerado um dos mais célebres poetas de seu país, além de um dos expoentes do movimento simbolista na literatura. Porém, seu mais famoso poema, "Chanson D'Automne" ("Canção do Outono"), que tinha mais valor pela sua musicalidade do que pelo significado, ganhou maiores proporções no final da Segunda Guerra Mundial.

No início de junho de 1944, durante transmissões de sua rádio, a BBC de Londres utilizou o poema como um código para informar à Resistência Francesa de que muito em breve os Aliados iriam desembarcar na Europa, incluindo a França tomada pelos nazistas do Eixo. Os revoltosos da França ficaram atentos e ansiosos pela mensagem de esperança. Então, no dia 6 de junho do mesmo ano, os soldados norte-americanos desembarcaram na região da Normandia e a data ficou conhecida como "dia D".

Confira abaixo o poema original em francês e uma tradução do poeta brasileiro Alphonsus de Guimaraens:

Chanson D'Automne    
Paul Verlaine

Les sanglots longs
Des violons
De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l'heure,
Je me souviens
De jours anciens
Et je pleure.

Et je m'en vais
Au vent mauvais
Qui m'emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.


Canção do Outono
Tradução de Alphonsus de Guimaraens

Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Ferem a minh'alma
Num langor de calma
E sono.

Sufocado, em ânsia,
Ai! quando à distância
Soa a hora,
Meu peito magoado
Relembra o passado
E chora.

Daqui, dali, pelo
Vento em atropelo
Seguido,
Vou de porta em porta,
Como a folha morta
Batido...

Douglas P. Coelho

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Resenha de "As origens e a evolução do conceito de tolerância", de Mauro Maldonato


Mauro Maldonato é um psiquiatra, filósofo e ensaísta italiano. Intelectual preocupado com conflitos humanos e as razões de seu comportamento no mundo, o autor escreveu o artigo "As origens e a evolução do conceito de tolerância", onde traça uma linha histórica de transformação deste importante conceito ao longo dos contextos históricos, trazendo novas perguntas bastante pertinentes em torno da "tolerância", sem cair no lugar-comum em momento algum.

Logo nas primeiras reflexões já é feito um paralelo entre a forma que a tolerância é encarada na atualidade e a forma que deveria ser, que seu significado pressupõe e, a partir disso, pode-se fazer uma ponte com o que é dito mais para o final do texto. O que Maldonato pondera é que este conceito é visto sob a ótica de uma "coexistência pacífica", como ele mesmo diz, onde há a concessão ao espaço do Outro - e aqui peço a licença de por em maiúscula em favor da simbologia da palavra - de forma a suportar que este tenha garantidos sua liberdade e direito, enquanto que estes são intrínsecos ao homem no que concerne a sua identidade; e é aí que entra uma contradição, pois a tolerância ja seria algo despótico, como observa o tribuno Mirabeau em sua citação transcrita no texto de Maldonato: "a existência da autoridade que tem o poder de tolerar ameaça a liberdade de pensamento pelo próprio fato de que ela tolera, e que, portanto, poderia não tolerar" (1789); a ponte com o final do artigo começa aqui, pois entra o papel da "autoridade", do Estado: como ele não é capaz da garantir o natural espaço para os indivíduos dentro da sociedade, ele impõe determinadas culturas através de suas leis que passam apenas pela visão única e fixa de um grupo fechado que as cria, uniformizando as variedades e diferentes formas de pensar. É dessa forma que a tolerância assume o equivocado sentido de indulgência, algo em que está implícito uma pretensiosa superioridade de um sujeito que doa um espaço, que deveria ser natural e imediato, a outrem.

Essa união de diferentes culturas, chamada pelo autor de "relativismo multicultural" tem implicações também na área da educação, das artes e do conhecimento - e, por que não, dos direitos humanos, já que ele está atrelado a esses outros valores - já que "o relativismo multicultural fornece álibi a quem é indiferente à necessidade (e ao prazer) de pensar", nas palavras de Maldonato; igualando todos os tipos de produção, há um déficit na hierarquização da grandeza da arte: "se tudo é semiótico ou sociológico significa que a relação entre os signos e os contextos prevalecem sobre o poder, a intensidade, a grandeza do pensamento e da criação artística ou literária".

Sem dúvidas, o conceito de "tolerância" é assaz dúbio, o que nos leva a mais um impasse: após ter se originado como permissão às transgressões às regras na Idade Média, ter se abrangido para liberdade de crença religiosa e em seguida ter aberto campo para reivindicações de igualdade civil e política durante a época revolucionária do século XVIII, a tolerância agora abraça diferentes culturas num misto dos mais diversos costumes que nos levam a perguntar: quais são os limites para a tolerância? Pois muitos indivíduos se utilizam de uma falsa liberdade de expressão em seus discursos como álibi para incitar o ódio ou a injustiça; então, deve-se tolerar agressões à própria dignidade humana pela covardia de se separar o certo do errado?

A tolerância é, certamente, um antídoto para a barbárie e agressões de toda espécie, mas, de tão embaraçosa, pelo simples fato de existir já suscita também a possibilidade do seu oposto, a intolerância, já que uma tênue linha separa ambas, linha essa que pode ser cortada pelo despotismo da autoridade que pode simplesmente escolher não tolerar, ou impor a alteridade pela indulgência.

Douglas P. Coelho

Para ler o texto completo de Mauro Maldonato com tradução de Roberta Barni, clique AQUI.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Poetas da Resistência: Paul Éluard


Paul Éluard é um dos nomes mais venerados da poesia francesa, considerado como integrante do movimento de vanguarda surrelista. Mas apesar da estética onírica da escola artística, Éluard foi um poeta militante e engajado socialmente, um dos maiores representantes da Resistência Francesa na literatura.

Seu poema mais célebre e conhecido é o maravilhoso Liberté (Liberdade), que teve milhares de exemplares lançados por aviões ingleses dentro da França ocupada pelos alemães, surgindo como um símbolo de esperança para um país sob ameaça nazista. Com o feito, Éluard tornou-se o grande homem das letras à frente da Resistência através de versos que a todo momento clamavam pelo bem que há muito parecia completamente suprimido.

Além, de Liberdade, os versos do livro Poemas Políticos traduzem bem o sentimento de necessidade da união e libertação dos homens: "vos queria libertar para vos unir", deseja o poeta em A Poesia Deve Ter Como Fim a Verdade Prática. Em Ó Meus Irmãos Contrários, reitera a força da liberdade - se utilizando de elementos que a lembram, como uma ave ou uma criança - pela união dos oprimidos: "Ó meus irmãos perdidos, com tão pouca esperança que a morte tem razão, eu vou para a vida tenho aparência de homem (...) E não estou só, mil imagens de mim multiplicam a luz, mil olhares semelhantes igualam a carne, é a ave é a criança é a rocha é a planície que se misturam a nós". E através de outro grande poema de título já bastante sugestivo, Grito, exprime sua vontade de por por terra os dias de medo e impotência através de um grito que gere ecos e frutos; num tempo em que "todos falavam e escreviam demasiado baixo", o poeta surge para "derrubar os gestos sem luz e os dias impotentes"; o desejo do poeta era que os homens, na semelhança de sua desgraça se descobrissem, finalmente, iguais: "Estou perfeitamente seguro agora que o Verão canta debaixo das portas frias (...) Ardem no meu coração as estações dos homens, trêmulos de tão semelhantes serem".

Douglas P. Coelho

Para ler os poemas citados na íntegra, clique sobre os nomes:
Liberdade
Gritar
Ó Meus Irmãos Contrários
A Poesia Deve Ter Como Fim a Verdade Prática

domingo, 10 de junho de 2012

Carlos Drummond e o poema da empatia - Parte 2


Após adentrar no campo da poesia social com Sentimento do Mundo, de 1940, Carlos Drummond de Andrade publica cinco anos depois outra obra bastante representativa desta fase: A Rosa do Povo.

Apesar da temática social, esta obra difere da outra por ter um teor reflexivo acerca do papel do artista num mundo transformado pelo horror e incompreensão. Neste sentido, a rosa seria uma metáfora para o artista, no caso, o poeta, como última esperança para o medo e o desamor. Tal sentimento fica claro já na pequena estrofe que serve de prólogo ao livro.


"A rosa do povo despetala-se,
ou ainda conserva o pudor da alma?
É um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil,
pranto infantil no berço?
Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.
Mas há um olvido mais fino que escuta, um peito de artista que incha, e uma rosa se abre, um segredo comunica-se. O poeta anunciou, o poeta, nas trevas, anunciou."

O poeta é o responsável por fazer a rosa se despetalar em meio às trevas ou à rua cinzenta como diz no belíssimo poema "A Flor e a Náusea"; nele o poeta fala da importância em se enfrentar o "enjoo" pela palavra: "Vou de branco pela rua cinzenta (...) Devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me? (...) Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera." O poeta também lamenta pelo homem que não é capaz de compreender a sua miséria e vive como um "morto-vivo" sem contato com a arte, metáfora tão utilizada na obra de Drummond: "Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. Vomitar esse tédio sobre a cidade. (...) Todos os homens voltam para casa. Estão menos livre mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem." É um poema que sintetiza a necessidade de desautomatizar o cotidiano pela arte: "Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. (...) É feia. Mas é realmente uma flor. (...) Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio."

No livro, há também poemas dedicados à uma preocupação evidente com a guerra e suas consequências. "Carta a Stalingrado" é o maior exemplo disso, com referência à Segunda Grande Guerra já no seu título, através do nome Stalingrado, cidade onde se deu a batalha decisiva entre a União Soviética e a Alemanha que delineou a derrota dos nazistas. O poema é um ode à cidade, que aqui aparece como um símbolo aos novos tempos, tempos de esperança à harmonia global, Stalingrado é o símbolo da resistência e confronto à barbárie. "Stalingrado, quantas esperanças!".

Douglas P. Coelho

Para ler os dois poemas na íntegra, clique sobre os nomes:
A Flor e a Náusea
Carta a Stalingrado

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Carlos Drummond e o poema da empatia - Parte 1

Carlos Drummond de Andrade, um dos mais célebres poetas brasileiros, se notabilizou pela sua poesia lírica das suas primeiras obras onde cantava o amor e outros sentimentos que povoavam seu espírito. Porém, à medida que o mundo se transfigurava em algo absolutamente ameaçador em meio às guerras, fome e afrontas aos direitos do homem, Drummond redirecionava sua poesia para o social, para um "eu menor que o mundo". Seus dois livros mais notáveis desta fase foram Sentimento do Mundo (1940) e a Rosa do Povo (1945). Nesse primeiro post, vamos comentar um pouco sobre o primeiro.

A poesia agora empática e altruísta de Drummond já se manifesta no título do livro, Sentimento do Mundo, um prenúncio de que o tempo presente obrigava o autor a voltar o olhar sobre as barbaridades do "novo mundo" e para as necessidades dos homens. Nele contém temas como crítica à burguesia pela sua passividade frente aos horrores e às injustiças contra as classes oprimidas, o medo e tensão causados pela presença quase física da guerra, a conformidade do trabalhador em face da impossibilidade de reverter sua situação (de "dinamitar a ilha de Manhatan", na metáfora de Drummond), mas principalmente a transformação que o mundo sofreu e a consequente mudança de atitude do poeta.

Já no poema de abertura, poema homônimo ao título do livro, há a contrição pela demora em enxergar o mundo a sua volta: "Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado (...) Os camaradas não me disseram que havia uma guerra (...) humildemente vos peço que me perdoeis"; pode-se interpretar pela palavra "camaradas" como alusão aos outros poetas que, como ele, não se preocupavam, até o momento, em falar sobre as guerras, o medo e a miséria - este significado volta à tona no último poema, Mundo Grande com a palavra "amigos" no penúltimo parágrafo.

A percepção da transição da paz para a destruição é tratada claramente em Lembrança do Mundo Antigo:
"Clara passeava no jardim com as crianças.

O céu era verde sobre o gramado,

a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das onze horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava no jardim, pela manhã!!!
havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!"
O antigo mundo de Clara era também o antigo mundo em que o poeta escrevia suas poesias líricas sobre o "eu". No poema Mãos Dadas, ele decreta: "Não serei poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. (...) Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins"; ao invés de poesia "entorpecente" ou subjetivamente pessimista (cartas de suicida), ele prefere cantar o tempo presente e dar as mãos com os homens de seu tempo: "Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas".

O último poema é um grande resumo de todo o resto do livro e talvez o mais simbólico em se falando de direitos humanos - considerando que este tem por base a empatia; o "mundo grande" maior do que o "coração do poeta" é a reafirmação de sua nova poesia. Ele fala de outros poetas que como ele fugiram de suas "ilhas" para anunciarem que "o mundo tá crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor"; o poeta que cresceu junto com seu coração para abrigar as dores dos homens agora escreve versos contundentes para nos levar a refletir sobre nossa posição frente à identidade do outro: "estúpido, ridículo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (...) Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre".

Douglas P. Coelho


Clique em cima dos nomes para ler os seguintes poemas na íntegra (não se esqueça, é claro, de que ler o livro na íntegra é o mais adequado):

Mãos Dadas - com áudio do Drummond recitando o poema
Mundo Grande - com áudio do Drummond recitando o poema

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Resenha de "A Metamorfose", de Franz Kafka

Obra mais cultuada e aclamada de Franz Kafka, tcheco que se tornou um ícone da literatura alemã, A Metamorfose (1915) é uma novela insólita que aborda problemáticas bastante reais através de uma narrativa perpetrada pelo absurdo e o fantástico.  
A narrativa e a história são simples: a primeira é feita de forma linear e com uso de discurso direto e indireto, sem muito mistério; a segunda se trata de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante que, após uma noite mal dormida de sonhos inquietantes, acorda transformado num inseto monstruoso de aspecto repugnante. Tomando esse ponto de partida, a história de Gregor se encaminha para a total rejeição da família e sociedade. Porém, o significado dessa obra é assaz complexo, podendo analisá-la de diversos prismas: como ela reflete nossa condição humana? Qual o significado metafórico da metamorfose do personagem principal? O que ela nos diz a respeito do contexto histórico e social da época?

A literatura de Kafka é ao mesmo tempo uma literatura do insólito e uma grande reflexão existencialista. Gregor é um homem como muitos que existem no cotidiano banal, não só do início do século XX, mas do século XXI e de qualquer outra época da história - apesar de ser um retrato mais fiel do homem moderno inserido num mundo burocrático e opressor -, tem horários a cumprir, viagens a trabalho a fazer, dias e mais dias longe da família:
"_ Ah, meu Deus! - pensou. - Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia - viajando. A excitação comercial é muito maior que na própria sede da firma e, além disso, me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso!" (KAFKA, 1997. p. 8)

Ele, como muitos outros, era oprimido pela rotina burocrática e mecanizada do seu cotidiano maçante, de muitos compromissos e pouco "convívio humano caloroso"; oprimido dentro de uma sociedade em que há os que mandam e os que obedecem, os que exploram e os que são explorados; uma existência tão automatizada que aos poucos vai perdendo sua humanidade, o que acontece de forma simbólica com Gregor.


Há outro trecho que ilustra bem a hierarquização entre o patrão e o empregado que coloca o primeiro em posição de "olhar de cima", a tentativa de "ruptura" por parte do oprimido e a consequente conformidade do mesmo em face da realidade momentânea (trecho aqui colocado propositalmente em negrito), ainda que com esperança:
"Se não me contivesse por causa dos meus pais, teria pedido demissão há muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do fundo do coração. Ele iria cair da sua banca! Também, é estranho o modo como toma assento nela e fala de cima para baixo com o funcionário (...) Bem, ainda não renunciei por completo à esperança: assim que juntar o dinheiro para lhe pagar a dívida dos meus pais (...) vou fazer isso sem falta. Por enquanto, porém, tenho de me levantar, pois meu trem parte às cinco. (KAFKA, 1997. p. 9)"
A incapacidade de Gregor em lidar com sua condição se reflete na progressiva conformidade, que primeiro o transforma em um monstro desumanizado, e depois se mostra no seu crescente silêncio e perda de voz, não por ter ficado literalmente mudo, mas por perder sua dignidade perante o chefe, o gerente, a sociedade e sua família. Aliás, é algo extremamente incômodo durante a leitura a forma como toda a sociedade (representada pelos três hóspedes da casa, a empregada, as pessoas da firma) e a família o rejeitam pela sua aparência.

Por fim, por que não situar a obra no contexto histórico entre-guerras em que foi escrito? Afinal, o século XX, em especial sua primeira metade, talvez tenha sido a era de maior afronta à vida e à dignidade humana; época que foi marcada por duas guerras e tensões para uma possível terceira, campanhas políticas para a segregação de classes e grupos, governos ditatoriais e fascistas por todo o planeta; época em que a fome e a miséria nunca foi tão alarmante, em que pessoas se viam obrigadas a se esconderem nos mais inimagináveis e abjetos lugares por medo, a serem sacrificadas como se nada fossem e valessem, vivendo definitivamente reclusas e rejeitadas como insetos, tal como na obra de Kafka.

Portanto, para uma discussão e até reflexão acerca dos direitos humanos por meio da literatura, A Metamorfose se mostra sempre atual e relevante, sendo os direitos do homem tratados tanto como respeito ao direito à vida como manutenção da dignidade humana, até porque só a vida não basta, se ela também não for digna de se viver.

Douglas Paraguassú Coelho

Referência Bibliográfica:
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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