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sexta-feira, 1 de junho de 2012

Resenha de "A Metamorfose", de Franz Kafka

Obra mais cultuada e aclamada de Franz Kafka, tcheco que se tornou um ícone da literatura alemã, A Metamorfose (1915) é uma novela insólita que aborda problemáticas bastante reais através de uma narrativa perpetrada pelo absurdo e o fantástico.  
A narrativa e a história são simples: a primeira é feita de forma linear e com uso de discurso direto e indireto, sem muito mistério; a segunda se trata de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante que, após uma noite mal dormida de sonhos inquietantes, acorda transformado num inseto monstruoso de aspecto repugnante. Tomando esse ponto de partida, a história de Gregor se encaminha para a total rejeição da família e sociedade. Porém, o significado dessa obra é assaz complexo, podendo analisá-la de diversos prismas: como ela reflete nossa condição humana? Qual o significado metafórico da metamorfose do personagem principal? O que ela nos diz a respeito do contexto histórico e social da época?

A literatura de Kafka é ao mesmo tempo uma literatura do insólito e uma grande reflexão existencialista. Gregor é um homem como muitos que existem no cotidiano banal, não só do início do século XX, mas do século XXI e de qualquer outra época da história - apesar de ser um retrato mais fiel do homem moderno inserido num mundo burocrático e opressor -, tem horários a cumprir, viagens a trabalho a fazer, dias e mais dias longe da família:
"_ Ah, meu Deus! - pensou. - Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia - viajando. A excitação comercial é muito maior que na própria sede da firma e, além disso, me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso!" (KAFKA, 1997. p. 8)

Ele, como muitos outros, era oprimido pela rotina burocrática e mecanizada do seu cotidiano maçante, de muitos compromissos e pouco "convívio humano caloroso"; oprimido dentro de uma sociedade em que há os que mandam e os que obedecem, os que exploram e os que são explorados; uma existência tão automatizada que aos poucos vai perdendo sua humanidade, o que acontece de forma simbólica com Gregor.


Há outro trecho que ilustra bem a hierarquização entre o patrão e o empregado que coloca o primeiro em posição de "olhar de cima", a tentativa de "ruptura" por parte do oprimido e a consequente conformidade do mesmo em face da realidade momentânea (trecho aqui colocado propositalmente em negrito), ainda que com esperança:
"Se não me contivesse por causa dos meus pais, teria pedido demissão há muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do fundo do coração. Ele iria cair da sua banca! Também, é estranho o modo como toma assento nela e fala de cima para baixo com o funcionário (...) Bem, ainda não renunciei por completo à esperança: assim que juntar o dinheiro para lhe pagar a dívida dos meus pais (...) vou fazer isso sem falta. Por enquanto, porém, tenho de me levantar, pois meu trem parte às cinco. (KAFKA, 1997. p. 9)"
A incapacidade de Gregor em lidar com sua condição se reflete na progressiva conformidade, que primeiro o transforma em um monstro desumanizado, e depois se mostra no seu crescente silêncio e perda de voz, não por ter ficado literalmente mudo, mas por perder sua dignidade perante o chefe, o gerente, a sociedade e sua família. Aliás, é algo extremamente incômodo durante a leitura a forma como toda a sociedade (representada pelos três hóspedes da casa, a empregada, as pessoas da firma) e a família o rejeitam pela sua aparência.

Por fim, por que não situar a obra no contexto histórico entre-guerras em que foi escrito? Afinal, o século XX, em especial sua primeira metade, talvez tenha sido a era de maior afronta à vida e à dignidade humana; época que foi marcada por duas guerras e tensões para uma possível terceira, campanhas políticas para a segregação de classes e grupos, governos ditatoriais e fascistas por todo o planeta; época em que a fome e a miséria nunca foi tão alarmante, em que pessoas se viam obrigadas a se esconderem nos mais inimagináveis e abjetos lugares por medo, a serem sacrificadas como se nada fossem e valessem, vivendo definitivamente reclusas e rejeitadas como insetos, tal como na obra de Kafka.

Portanto, para uma discussão e até reflexão acerca dos direitos humanos por meio da literatura, A Metamorfose se mostra sempre atual e relevante, sendo os direitos do homem tratados tanto como respeito ao direito à vida como manutenção da dignidade humana, até porque só a vida não basta, se ela também não for digna de se viver.

Douglas Paraguassú Coelho

Referência Bibliográfica:
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

2 comentários:

  1. Legal seu post! Obra indispensável "A Metamorfose", bastante reflexiva. Curioso, mas me fez lembrar Clarice Lispector, que também trouxe à luz a alienação de forma esplêndida em "A Hora da Estrela", a ponto de se interromper a leitura (para continuar depois)tamanha a náusea provocada pela alienação. Pois é, são as ligações literárias. Uma história puxa a outra...
    D. Magri

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  2. É verdade, muito bem lembrado essa ligação com A Hora da Estrela. Outra obra que remete um pouco à necessidade de se ter "olhos que enxergam" o mundo à volta é Ensaio Sobre a Cegueira do Saramago e a famosa frase que precede a história: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara".

    Obrigado pelo comentário.

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