Obra mais cultuada e aclamada de Franz Kafka, tcheco que se tornou um ícone da literatura alemã, A Metamorfose (1915) é uma novela insólita que aborda problemáticas bastante reais através de uma narrativa perpetrada pelo absurdo e o fantástico.A narrativa e a história são simples: a primeira é feita de forma linear e com uso de discurso direto e indireto, sem muito mistério; a segunda se trata de Gregor Samsa, um caixeiro-viajante que, após uma noite mal dormida de sonhos inquietantes, acorda transformado num inseto monstruoso de aspecto repugnante. Tomando esse ponto de partida, a história de Gregor se encaminha para a total rejeição da família e sociedade. Porém, o significado dessa obra é assaz complexo, podendo analisá-la de diversos prismas: como ela reflete nossa condição humana? Qual o significado metafórico da metamorfose do personagem principal? O que ela nos diz a respeito do contexto histórico e social da época?
A literatura de Kafka é ao mesmo tempo uma literatura do insólito e uma grande reflexão existencialista. Gregor é um homem como muitos que existem no cotidiano banal, não só do início do século XX, mas do século XXI e de qualquer outra época da história - apesar de ser um retrato mais fiel do homem moderno inserido num mundo burocrático e opressor -, tem horários a cumprir, viagens a trabalho a fazer, dias e mais dias longe da família:
"_ Ah, meu Deus! - pensou. - Que profissão cansativa eu escolhi. Entra dia, sai dia - viajando. A excitação comercial é muito maior que na própria sede da firma e, além disso, me é imposta essa canseira de viajar, a preocupação com a troca de trens, as refeições irregulares e ruins, um convívio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna caloroso. O diabo carregue tudo isso!" (KAFKA, 1997. p. 8)
Ele, como muitos outros, era oprimido pela rotina burocrática e mecanizada do seu cotidiano maçante, de muitos compromissos e pouco "convívio humano caloroso"; oprimido dentro de uma sociedade em que há os que mandam e os que obedecem, os que exploram e os que são explorados; uma existência tão automatizada que aos poucos vai perdendo sua humanidade, o que acontece de forma simbólica com Gregor.
Há outro trecho que ilustra bem a hierarquização entre o patrão e o empregado que coloca o primeiro em posição de "olhar de cima", a tentativa de "ruptura" por parte do oprimido e a consequente conformidade do mesmo em face da realidade momentânea (trecho aqui colocado propositalmente em negrito), ainda que com esperança:
"Se não me contivesse por causa dos meus pais, teria pedido demissão há muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do fundo do coração. Ele iria cair da sua banca! Também, é estranho o modo como toma assento nela e fala de cima para baixo com o funcionário (...) Bem, ainda não renunciei por completo à esperança: assim que juntar o dinheiro para lhe pagar a dívida dos meus pais (...) vou fazer isso sem falta. Por enquanto, porém, tenho de me levantar, pois meu trem parte às cinco. (KAFKA, 1997. p. 9)"A incapacidade de Gregor em lidar com sua condição se reflete na progressiva conformidade, que primeiro o transforma em um monstro desumanizado, e depois se mostra no seu crescente silêncio e perda de voz, não por ter ficado literalmente mudo, mas por perder sua dignidade perante o chefe, o gerente, a sociedade e sua família. Aliás, é algo extremamente incômodo durante a leitura a forma como toda a sociedade (representada pelos três hóspedes da casa, a empregada, as pessoas da firma) e a família o rejeitam pela sua aparência.
Por fim, por que não situar a obra no contexto histórico entre-guerras em que foi escrito? Afinal, o século XX, em especial sua primeira metade, talvez tenha sido a era de maior afronta à vida e à dignidade humana; época que foi marcada por duas guerras e tensões para uma possível terceira, campanhas políticas para a segregação de classes e grupos, governos ditatoriais e fascistas por todo o planeta; época em que a fome e a miséria nunca foi tão alarmante, em que pessoas se viam obrigadas a se esconderem nos mais inimagináveis e abjetos lugares por medo, a serem sacrificadas como se nada fossem e valessem, vivendo definitivamente reclusas e rejeitadas como insetos, tal como na obra de Kafka.
Portanto, para uma discussão e até reflexão acerca dos direitos humanos por meio da literatura, A Metamorfose se mostra sempre atual e relevante, sendo os direitos do homem tratados tanto como respeito ao direito à vida como manutenção da dignidade humana, até porque só a vida não basta, se ela também não for digna de se viver.
Douglas Paraguassú Coelho
Referência Bibliográfica:
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Legal seu post! Obra indispensável "A Metamorfose", bastante reflexiva. Curioso, mas me fez lembrar Clarice Lispector, que também trouxe à luz a alienação de forma esplêndida em "A Hora da Estrela", a ponto de se interromper a leitura (para continuar depois)tamanha a náusea provocada pela alienação. Pois é, são as ligações literárias. Uma história puxa a outra...
ResponderExcluirD. Magri
É verdade, muito bem lembrado essa ligação com A Hora da Estrela. Outra obra que remete um pouco à necessidade de se ter "olhos que enxergam" o mundo à volta é Ensaio Sobre a Cegueira do Saramago e a famosa frase que precede a história: "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara".
ResponderExcluirObrigado pelo comentário.